7/19/2017

SOBRE A CURADORIA 2017 - ROGÉRIO NUNO COSTA ENTREVISTA DINIS MACHADO | Parte III de VI . Julho 2017







Um diálogo virtual entre Rogério Nuno Costa e Dinis Machado

Parte III de V . Julho 2017
 

20.06.2017 Rogério Nuno Costa
O mês de Julho dá o arranque a um dos projectos centrais da tua curadoria. Entre os dias 18 de Julho e 3 de Agosto, a coreógrafa sueca Rebecka Stillman estará em residência no Espaço Imaginarius Centro de Criação - Arte e Espaço Público para o desenvolvimento de um programa (que integra também uma outra peça assinada por Litó Walkey), cujo título - Ballet // Contemporâneo // Norte - encerra desde logo a vontade de questionamento dos pilares estruturantes da companhia. Como é que a reflexão em torno desta tríade espácio-temporal (contextual?), ao mesmo tempo técnica e artística, ditará uma possibilidade de reinvenção e/ou auto-definição? Com que agentes e com que processos/resultados? Em última instância, que ballet, que contemporâneo e que Norte são estes sobre os quais nos queremos debruçar?

03.07.2017 Dinis Machado
O título do programa surge de uma conversa que tive há um par de anos com alguém que me dizia que o nome Ballet Contemporâneo do Norte era um problema e que talvez devesse ser mudado por enunciar uma agenda que seria obsoleta. A minha perspectiva não podia ser mais antípoda a esta. Parece-me que o nome de uma estrutura, ou de qualquer projecto, é sempre datado, e reflecte inevitavelmente questões e estéticas do seu tempo: já passámos a época das siglas, dos projectos com títulos muito compridos, dos nomes técnicos, do retorno das nomenclaturas ficcionais, dos títulos que juntam duas ou três palavras que não fazem muito sentido juntas, etc. Um título marca sempre um momento no tempo de algo que vai inevitavelmente transformar-se em relação com a sua história. A ideia de apagar a história parece-me um exercício perigoso e reflecte uma lógica determinista: a de que uma coisa que foi não se pode transformar noutra. Parece-me fundamental que se entenda a prática e a dramaturgia de uma estrutura na forma como esta se reinventa em relação com a sua história. Uma companhia, enquanto entidade colectiva, é sempre um exercício de reescrita; todos os colaboradores (directores artísticos, coreógrafos, bailarinos, produtores, etc.) contribuem para a reescrita do entendimento daquilo que foi, é, ou poderá vir a ser o projecto, numa dialéctica silenciosa que acontece através das suas práticas diárias e da forma como respondem e se envolvem com o projecto geral da companhia. É a negociação de uma identidade, que se constrói e se estabelece num fazer colectivo que vai para além dos encontros e das divergências entre as práticas dos elementos que fazem parte. A companhia é assim uma entidade dinâmica em contínuo processo de reformulação.
O título Ballet // Contemporâneo // Norte propõe a decomposição das palavras que compõem o nome da companhia, palavras que irão ganhar novos sentidos na sua relação com esta produção. Ballet surge como provocação para um olhar sobre duas coreógrafas que têm investigado novas formas de abordar práticas físicas, técnicas, metodologias, gramáticas e linguagens coreográficas. Também como uma provocação de uma revisitação de dramaturgias formalistas que investem na arquitectura de uma linguagem mais do que numa lógica de “conteúdo” muito marcada em Portugal pelo peso do Dance-Theatre. Contemporâneo constitui-se como pergunta ou provocação a uma ideia essencialista de uma história da dança cronicamente escrita a partir de um Ocidente central: normativo, branco e masculino. Existe uma contemporaneidade absoluta? Ou deveríamos antes perspectivar contemporaneidades relativas e simultâneas, que coexistem e dialogam a partir de múltiplas vozes? Num programa que também existe em diálogo com o contexto de Estocolmo, onde vivo e onde tomei contacto com as práticas destas duas coreógrafas, a palavra Norte surge aqui na sua relatividade geográfica — Santa Maria da Feira está no Norte de Portugal, e Portugal está no Sul da Europa —, expondo uma provocação evidente: como é que uma definição aparentemente objectiva tem afinal outros significados quando olhada de uma outra perspectiva. O nome que proponho para este programa propõe, assim, uma reflexão sobre uma companhia enquanto objecto que se reinventa ao longo do tempo, e que ganha diferentes significados quando olhado por diferentes perspectivas, passando pela mão de diversos curadores, coreógrafos e bailarinos.

07.07.2017, Rogério Nuno Costa
Paradoxalmente (ou não), essa reinvenção pretende desenvolver-se a partir de uma pesquisa que é também patrimonial. Como é que este interesse, ao mesmo tempo conceptual e arquivístico-documental, pela ideia de repertório — que Miguel Pereira já havia trabalhado para a companhia em 2015 — , será abordado neste novo projecto? Ou como se (re-)escreve uma história (a da companhia, mas também a da dança) que se pretende projectada num futuro, mesmo que teórico?

07.07.2017 Dinis Machado
Penso que as ideias de património aqui propostas não têm tanto a ver com uma lógica de citação ou revisitação de efemérides ou objectos históricos, mas antes com o acto de trabalhar com os sedimentos de uma identidade. Trabalhar sobre a forma como a história da companhia e dos bailarinos (naquilo em que se cruzam, e naquilo que têm de específico) informa o lugar onde estes corpos estão, hoje, e a partir do qual criam e activam estas danças. Parece-me que estas coreógrafas estão atentas ao facto de que é urgente perguntar que corpo activa esta dança e que significados o seu corpo específico pode inscrever. É uma questão de não tratar os corpos como vazios a preencher, mas também evitar uma espécie de documentarismo figurativo à la Jérôme Bel. Trata-se antes de um diálogo subtil e abstracto entre o corpo que dança e o corpo que convida a dançar.

09.07.2017 Rogério Nuno Costa
Fala-me um pouco mais sobre a especificidade autoral das coreógrafas que integram este programa. E também, se achares pertinente, sobre os corpos que irão dançar.

10.07.2017 Dinis Machado
A Rebecka Stillman tem vindo a desenvolver um trabalho proto-antropológico, dialogando com as referências presentes no corpo de cada bailarino, e questionando como é que essas referências constroem a forma como um corpo contribui para uma entidade colectiva (uma companhia, por exemplo). Ela desmonta a ideia de dança de cada bailarino, interrogando as referências e as memórias do seu percurso, para depois as analisar e decompor numa infinidade de micro-elementos, que são depois re-misturados sob diversos critérios, construindo uma partitura. Essa partitura é depois devolvida aos intérpretes, num convite para que re-visitem o seu próprio imaginário, as suas próprias referências, numa outra arquitectura.
A Litó Walkey desenvolve um trabalho que se desenrola através de uma sedimentação de processos; os mesmos materiais são reformulados uma e outra vez dentro dos colectivos com que trabalha. As suas peças constroem uma espécie de imaginário de um surrealismo concreto, onde os materiais se legitimam mais pela densidade gerada pela materialidade do investimento dos corpos do que por uma qualquer retórica argumentativa.
A equipa que dança estes trabalhos sou eu, a Susana Otero e o Jorge Gonçalves, artistas que se dividem entre dançar, gerar e experimentar contextos curatoriais e de criação específicos, explorando a possibilidade das políticas de produção cultural poderem ser parte dramatúrgica de uma dança.