Uma arqueologia a-temporal
(e incidental) de factos/ficções para ver Repertório para cadeiras, figurantes
e figurinos, um espetáculo de Miguel Pereira para o Ballet Contemporâneo do
Norte
Se
está a ler este texto, assuma que na verdade já o leu. Ou se decidir parar para
ler mais tarde (por exemplo: depois do espetáculo), assuma que essa sua
projeção futura está na verdade a acontecer no dia 29 de Abril de 1995, ou então
2015, ou então amanhã, em 2025, em 5225, ou há 2525252525 anos atrás. Já sabemos
que não houve Big Bang nenhum. A
inexistência de um qualquer Início inaugural leva à consequente invalidação de toda
e qualquer ideia de Fim. Vamos então impor, aqui, neste texto, uma nova
temporalidade, uma historiografia transformada em historiologia, ou uma gramática
do infinito. Para uma ciência (exata!) das especulações, e para uma elaboração
trans-histórica à volta de um espetáculo, dos seus criadores e dos seus
espetadores. A viagem será vertiginosa; aconselhamos alguma calma... Lembre-se
que pode sempre parar, conquanto tenha uma cadeira perto de si onde possa
sentar-se e observar a sua própria respiração. Não queira procurar no texto explicações
para o espetáculo que vai/está a ver, nem tão pouco uma verificação das suas
especificades técnicas. O texto é uma emanação do espetáculo e projeta-se em várias
direções temporais e emocionais: para trás dele, para a frente dele, para
dentro dele. Mas não por causa dele. Quando
deixa de haver “história” (a palavra e também a disciplina), omite-se a consequencialidade: passado, presente e
futuro condensados num só prisma arquitetural. Entendamos, então, que nunca
viajámos no espaço, mas sim no tempo; e que este é circular, circulatório e
circunscrito. Ou seja, infinito. Tal como este texto. Mas não se deixe enganar!
O espetáculo que vai/está a ver não é do Agora,
esse chavão formal inventado à pressa pela Taschen para vender resumos
Europa-América... O espetáculo que vai/está a ver é do regime do Depois. Não começa, logo, não acaba,
resistindo num sempiterno a-pós, num
incomensurável e fatídico a-seguir...
Entrar nesta realidade matricial implica termos que desapertar o cinto da
convenção, parar o relógio, ficar à espera que a hora marcada volte a ser
verdade, para então abraçarmos definitivamente a nossa condição de
figurantes/figurinos sentados, em pano de fundo, a assistir à mesma tragédia de
sempre. Os espetáculos são todos iguais. Todos. Só muda o foco. Assumamos então
este texto, caro leitor, como uma lente progressiva, não para ver melhor, nem
sequer para ver mais, mas para ver depois.
No texto, e também no espetáculo, se condensa(rá) tudo aquilo que já aconteceu
e tudo aquilo que vai acontecer. Por serem desprovidos dos erros associados ao
destino biológico — o texto é uma folha de papel com um prazo de validade muito
superior ao da pessoa que o segura; o espetáculo é uma realidade imaterial,
logo, sem tempo —, ambos se apresentarão em permanente curto-circuito lógico,
revendo infinitamente as milhares de hipóteses de futuros e de passados
possíveis.
Post hoc ergo propter
hoc.
Por
(já) não haver qualquer diferença epistemológica entre realidade e ficção,
queremos então convidá-lo a participar desta nossa arqueologia de descobertas
que são invenções, e de invenções que são descobertas, e assim sucessivamente...
Repito: não se deixe enganar! É tudo verdade, aqui e no palco! Qualquer
semelhança da cronologia do texto com a do espetáculo terá sido pura coincidência.
Ou não... Caberá a si apontar a agulha para um, para o outro, ou para os dois
ao mesmo tempo. É no Norte que deverá encontrar a chave para a decifração do
momento.
Rogério
Nuno Costa
(his)STORY
Entre 4.1 a 3.9 biliões
de anos atrás
Após
o bombardeamento de meteoritos que deu origem à Lua e que terá, segundo os
especialistas da altura, erradicado da face da Terra todas as formas primordiais
de Vida, essa mesma Vida renasce 300 milhões de anos depois, ou seja, no dia
seguinte, exatamente do mesmo ponto onde tinha terminado. Os especialistas da
altura definem este momento como o início da Contemporaneidade.
65 milhões de anos atrás
Um
novo cataclismo tragicómico faz desaparecer os dinossauros da face da Terra,
assim como 50% de todas as restantes formas de vida. Os outros 50%, por não
saberem que são metade de algo que já não é, acreditam ser donos do seu próprio
destino. Nasce a primeira teoria da conspiração, que os especialistas da altura
designam por Arte.
1.9 milhões de anos
atrás
Um
homem põe-se em bicos de pés, levanta os braços no ar, consegue ficar erectus durante uns breves segundos,
suficientes porém para conseguir chegar a uma árvore com maçãs. Nasce o Ballet.
1.9 milhões de anos
atrás (+ 1 dia)
O
mesmo homem regressa à árvore para apanhar outra maçã, repetindo exatamente os
mesmos movimentos. Um segundo homem senta-se numa pedra e fica a observar.
Nasce o Teatro.
Entre 100 a 500 mil anos
atrás
Um
homem cobre-se de pele de antílope e sai para ir caçar. Por se parecer com um
antílope, atrai outros antílopes. Não só caça mais, como também é caçado. Nasce
a roupa. No dia seguinte, outro homem
aproveita-se da desgraça do homem morto e rouba-lhe a pele de antílope para assim
poder reproduzir tecnicamente o seu sucesso. Nasce o figurino.
20 mil anos atrás
Com
a ajuda de pigmentos naturais, um homem imprime a marca da sua mão numa gruta em
Lascaux (atual França), colocando a seguinte legenda: “Se eu não partilhar isto
no meu mural, é porque nunca aconteceu”. Nasce a História.
±1000 a.C.
Alguém,
ao ser questionado sobre a existência de um deus omnipotente, omnipresente e
onnisciente, leva o dedo indicador à língua, molha-o com saliva e aponta-o aleatoriamente
para cima da cabeça. Nasce a noção ocidental de Norte.
700 a.C.
Hesíodo
escreve sobre si próprio e chama a isso História. Nasce a Arte Conceptual.
495 a.C.
Poucas
horas antes de morrer, Pitágoras afirma que o número 1 não existe, provocando
uma disrupção cósmica e um rasgo incidental na linha do espaço/tempo. Desse
cataclismo emana o conceito contemporâneo de “linha morta”, em Lingua Franca: deadline.
450 a.C.
Heródoto
de Halicarnasso escreve as suas Histórias.
Autores contemporâneos detetam no texto vários plágios, mas porque ainda não existia
o conceito de copyright e a Justiça™
distinguia futurologia de passadologia, Heródoto é aclamado o pai da História.
Da disciplina, não da palavra.
347 a.C.
Platão
revela aos Atenienses que o Início é
a parte mais importante de qualquer trabalho. Morre logo a seguir.
0
Nasce
Jesus Cristo. Para comemorar, imprime-se o primeiro calendário e o Mundo começa
a avançar numa só direção.
Entre os séculos V e XIV
d.C
Hiato
a-temporal que os especialistas definem por “trevas”, espaço privilegiado para
a efabulação fetichista da ficção contemporânea. Datam deste período as
primeiras reconstituições históricas e os primeiros cursos práticos de Mimésis (aka Histórias para Pessoas
Mimadas).
1492
Cristóvão
Colombo inventa a América e Guy Debord começa imediatamente a escrever a Sociedade do Espetáculo.
Século XVI
As
“trevas” terminam não com o início da Renascença, mas com a vulgarização da
cadeira como assento privilegiado para os momentos de paragem higiénica. Todos
os atos e ações quotidianos passam a ser observados de uma zona de conforto.
Desenham-se roupas especiais para vestir nesses momentos. Nascem as primeiras
cátedras em Estudos de Performance.
1637
Devido
a um entrelaçamento quântico do mundo ocidental com o mundo oriental, o espaço é
agora cartesiano. O tempo também. Schrödinger, de passagem trans-dimensional
por estas bandas, escreve a seguinte anedota: “O tempo perguntou ao espaço
quanto tempo o espaço tem. O espaço respondeu ao tempo que o tempo tem tanto
espaço quanto espaço o tempo tem.”
1661
Luís
XIV funda a Académie Royale de Danse. O Ballet passa a designar-se por dança comunitária. Não fosse a sua
migração Contemporânea para o Norte, e ter-se-ia extinguido.
1752
Diderot,
na sua Encyclopédie, escreve sobre a
cadeira. Assim: “S.f. (Art mécanique) espèce de meuble sur lequel on s'assied.”
1818
Mary
Shelley publica a obra-prima Frankenstein,
um tratado filosófico onde o conceito de mashup
é pela primeira vez definido e sistematizado.
1847
A
palavra francesa répertoire é usada
pela primeira vez para se referir a um conjunto de peças que uma companhia ou
um intérprete sabe ou se encontra preparado para executar. Vem do Latim repertorium, que significa catálogo ou
inventário. As companhias de dança passam a ser dirigidas por Diretores de
Marketing.
1853
Estreia
a ópera La Traviata de Giuseppe Verdi,
a primeira stock opera da história, re-utilizada
massivamente em anúncios publicitários, cerimónias inaugurais, comícios
políticos, cenas heróicas de filmes de Hollywood, vídeos de apanhados no
Youtube e espetáculos de dança-teatro com forte carga emocional.
1863
Acontece
o primeiro Salon des Réfusés, em
Paris.
1905
Albert
Eisntein publica Zur Elektrodynamik
bewegter Körper ("On the Electrodynamics of Moving Bodies”). Quase ao
mesmo tempo, Vaslav Nijinski, então com 15 anos, recebe a sua primeira standing ovation após um incrível salto
em suspensão durante uma apresentação escolar ao som de In A Persian Market.
1916
Em
Zurique, vários artistas Dada anunciam um grande espetáculo, com data e local
marcados. Chegado o dia, o público aparece, mas nada acontece. Um ano depois nascem
Miguel Pereira, Susana Otero, Joclécio Azevedo e Rogério Nuno Costa, quase ao
mesmo tempo. Crê-se que esse ano inaugural seja a Fonte donde nascem todos os artistas que se encontram vivos em 2016.
1919
Marcel
Duchamp escreve L.H.O.O.Q. em cima de uma reprodução da Mona Lisa. Nasce a primeira folha
de sala da história.
1928
Alexander
Fleming esquece-se do relógio no seu laboratório de experiências químicas.
Quando regressa das férias, descobre a vacina contra a linearidade narrativa.
Num plano paralelo mais ou menos simultâneo, Magritte escreve “ceci n’est pas
une pipe” numa tela com o mesmo nome.
1931
Alvar
Aalto desenha a icónica cadeira de braços 41
Paimio. Nasce o conceito contemporâneo de retro.
1937
É
atribuído o primeiro Óscar para
Melhor Ator Secundário pela Academy of Motion Pictures Arts and Sciences. Surge
o conceito contemporâneo de “artista emergente”.
1943-47
Na
Suécia, O IKEA comercializa as primeiras cadeiras ergonómicas com materiais
leves e baratos. Quatro anos depois, a poucos quilómetros de distância, a
H&M comercializa as primeiras t-shirts básicas que dão com tudo. Ainda se
enterram os corpos do Holocausto, mas no Norte (o da Europa e o da América) já
se fala à boca cheia de do-it-yourself.
1949
Inspirado
pela figura de Joseph Stalin, que mandava editar fotografias suas de forma a
eliminar pessoas desnecessárias (inimigos, defuntos, etc.), George Orwell
escreve o manual de instruções 1984,
prevendo importantes vanguardas estéticas contemporâneas, como o Photoshop.
1952
Ionesco
publica "As Cadeiras", uma peça de teatro sobre cadeiras. A
invisibilidade passa a ser o tema-fetiche de todas as artes e de todos os
ofícios.
1968
Ao
terceiro dia do mês de Agosto, Salazar cai de uma cadeira.
1973
Andy
Warhol transforma Mao Tsé-Tung num ícone pop: colorido, massivo e reprodutível.
1974
No
dia 6 de Abril, em Brighton, o grupo musical Abba, representando a Suécia,
ganha o Festival Eurovisão da Canção com “Waterloo”, uma música disco que fala sobre rendição. Dezanove
dias depois, em Portugal, a cadeira rende-se à decrepitude e cai em cima dela
própria.
1978
Pina
Bausch estreia a peça-ícone Café Müller.
É sobre cadeiras.
1983
Na
mesma latitude geográfica, logo estética, Anne Theresa de Keersmaker apresenta Rosas danst Rosas. Também é sobre
cadeiras.
1989
A
9 de Novembro, em Berlim, cai a maior cadeira do Mundo. Deixa de fazer qualquer
sentido escrever coisas como “é sobre...”.
1990
António
Pinto Ribeiro publica a obra Por exemplo
a cadeira. Ensaio sobre as artes do corpo. “As cadeiras definem o homem
como ser que, em determinados momentos do seu percurso histórico, necessita de
conter a energia das ações e dos movimentos para pensar essa mesma energia”.
Descartes e Einstein andam à chapada no túmulo.
1991
Após
visitar as grutas de Lascaux, Donna Haraway escreve, com 20 mil anos de atraso,
o Manifesto Cyborg. O Mundo inteiro
(Portugal incluído) senta-se numa cadeira e pára para pensar. Hashtags: anos90,
novadança, crisedaoriginalidade. Vera Mantero levanta-se da cadeira e diz: talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar
depois. Descartes e Einstein fazem as pazes.
1993
A
European Organization for Nuclear Research (CERN) coloca o software da World Wide Web no domínio público. O primeiro site
disponibilizado na World Wide Web é sobre a World Wide Web. A banda holandesa 2
Unlimited lança o hit No Limit,
cantando “no no limits, won’t give up the fight, we do what we want, and we do
it with pride”, obra seminal do último movimento artístico 100% europeu: o eurodance.
1995
Nasce,
no dia 29 de Abril, o Ballet
Contemporâneo do Norte. Traduzido livremente a partir da Novilíngua, o nome
significa qualquer coisa como: sistema (ballet)
infinitamente (contemporâneo) imaterial
(do Norte).
1998
Elisa
Worm cria a primeira peça para o Ballet Contemporâneo do Norte e chama-lhe A Última Dança. O fim passa a ser o
tema-fetiche de todas as artes e de todos os ofícios.
1999
Na
Holanda, nasce o programa de televisão Big
Brother, um tutorial pré-apocalíptico d’après
Orwell para as pessoas aprenderem a (sobre)viver: todas as coisas passam a ser sobre elas próprias. A 31 de Dezembro,
ao bater da meia-noite, os computadores deixam de reconhecer a linguagem
binária e o mundo (em letra pequena) colapsa.
2000
Miguel
Pereira, o primeiro coreógrafo pós-apocalíptico da (His)tória, cria Antonio Miguel, homenageando Hesíodo,
passando por cima de Heródoto, e perpetuando o Fim para lá da sua morte
anunciada.
2001
Os
belgas 2 Many Djs/Soulwax vaticinam que a música pop perfeita será aquela que
conseguir juntar os melhores truques de todas as melhores músicas pop da
História, um frankenstein
meta-referencial a que chamam Pop will
eat itself. A arte, como sempre fez, vê e copia. Meses depois, as Torres
caem (já não há cadeiras) e o Stockhausen aplaude. Miguel Pereira volta a
profanar a linearidade temporal e cria Notas
para um Espetáculo Invisível.
2002
Cada
vez mais arqueológico, a-temporal e incidental, Miguel Pereira esquece-se do
relógio no seu laboratório químico, e quando regressa descobre a vacina contra
o vírus da animação sócio-cultural. Apresenta a patente sob a forma de
espetáculo a que dá o nome de Data/Local.
Rogério Nuno Costa assiste duplamente ao espetáculo e aos espetadores; estes,
recusando arrancar os óculos 3D que trazem acoplados à retina, caem como tordos
das cadeiras. Quando regressa a casa, Rogério ouve os primeiros mashups de
Gregg Gillis [aka Girl Talk] e decide que em 2016 irá escrever um texto que é
todo ele um mashup de outros textos
já escritos, ou por escrever.
2003
O
Human Genome Project consegue sequenciar 99% do genoma humano com uma taxa
de precisão de 99.99%. Em jeito de
homenagem espiritual a tais empreendimentos, Luís Carolino cria a Teologia da Queda para o Ballet
Contemporâneo do Norte.
2005
Arte
e Entretenimento já não se distinguem. Miguel Pereira apresenta Corpo de Baile, um espetáculo onde os
figurinos são os protagonistas.
2008
Rogério
Nuno Costa descobre na Internet que o texto-mashup que ele quer escrever já foi
escrito. Começa a Crise.
2009
Slavoj
Žižek publica First as tragedy, then as
farce. Meses depois, circula na Internet uma lista de inventores que foram
mortos pelas suas próprias invenções.
2010
Elisa
Worm apresenta 7 Personagens em Hora de
Ponta, a sua última peça para o Ballet Contemporâneo do Norte. Um
espetáculo onde os figurantes são os protagonistas.
2011
Inspirada
pelo revivalismo vintage, Beyoncé
lança o single Countdown, onde faz
uma revisão académica, em bomba-relógio, de todos os coreógrafos europeus do
Antigo Regime, desde o apogeu frenético dos anos 80 à sua derrocada conceptual
dez anos depois. É acusada de plágio, mas a Justiça™ já não funciona
retroativamente... Susana Otero cria para o Ballet Contemporâneo do Norte a
peça A notícia da minha morte foi um
exagero.
2012
Joclécio
Azevedo cria para o Ballet Contemporâneo do Norte a peça Conspurcados. A Nostalgia™ passa a ser o tema-fetiche de todas as
artes e de todos os ofícios. Por tal motivo, o Mundo desiste de acabar.
2014
Os
2 Unlimited regressam após um hiato de 15 anos. Rogério Nuno Costa regressa, com
eles, a todos os pesadelos fin-de-siècle,
criando para o Ballet Contemporâneo do Norte a peça EURODANCE. É sobre a última vez em que a Europa foi um
continente-conceito feliz, ou seja, é sobre o adiamento (nostálgico) do Fim.
Outra vez.
2015
O
Ballet Contemporâneo do Norte completa 20 anos de existência e não faz nada
para comemorar: efémero e efeméride partilham o mesmo radical
grego, mas nunca se deram muito bem. A partir de uma fotografia tirada por
Edgar Tavares ao espetáculo 7 Personagens
em Hora de Ponta, de Elisa Worm, onde dois bailarinos mais ou menos
anónimos criam incidentalmente a imagem de uma cadeira, Miguel Pereira começa a
criar o espetáculo Repertório para
cadeiras, figurantes e figurinos. Rogério Nuno Costa, de visita à sala de
ensaios, rouba a matriz que deu origem a este texto, colada em papel de cenário
numa das paredes.
2016
Em
Abril, poucos dias antes da re-estreia de Repertório
para cadeiras, figurantes e figurinos, Rogério Nuno Costa escreve a palavra
History no Google e a primeira coisa
que aparece é uma música-repertório de uma banda chamada One Direction.
2016
Em
Maio, poucos dias após a re-estreia de Repertório
para cadeiras, figurantes e figurinos, é publicada numa revista da
especialidade a seguinte “crítica” ao espetáculo:
“(...)
Repertório... propõe assim revisitar
as fórmulas conceptuais criadas nos últimos tempos, mas em avalanche, em
zapping cultural, reflexo do novo hedonismo que está hoje ao alcance de todos
pela pirataria, pelo plágio e pelas novas tecnologias, que suprimem a agonia da
escolha, os constrangimentos da falta de educação e de dinheiro, permitindo assim
encontrar e criar em todo o lado, e a todo o momento, objetos de satisfação
polimorfos. Esta prodigalidade cultural funciona como sistema imunitário contra
todos aqueles que querem pôr em causa a sua legitimidade, expondo
flagrantemente a caducidade das propostas de inúmeros artistas contemporâneos
convencidos do caráter polémico, rebelde, escandaloso e subversivo das suas
obras, sabendo que a cultura dominante tira benefício dessa pretensa provocação
artística, transformando-a em nova retórica de Estado e de mercado. Por mais
fascinantes que essas obras possam ser, elas só significam nostalgia e
amargura. Em Repertório...
reconhecemos essa redução do qualitativo ao quantitativo, como se tudo fosse
desaguar confusamente à feira de produtos vintage, em segunda mão. A dualidade entre arte e kitsch,
estabelecida no modernismo por Greenberg, está aqui desmascarada. Em Repertório..., a arte foi arrebatada
pela loja dos trezentos, e as criadas podem finalmente vestir, sem medo, as
roupas provocantes e vanguardistas da Senhora... Compreendemos agora como é
obsoleta a estética fundada no juízo de valor e na qualidade das obras, assim
como o ofício nulo da crítica de arte, alojado num papel puramente promocional.
(...) Esta visão das coisas revela-nos, porém, dois conflitos. O primeiro
reside no confronto da liberdade de julgar e elaborar critérios de gosto
individual face à poderosa solicitação do consumismo e do sistema cultural; ou
seja, na melhor das hipóteses, a nossa liberdade está viciada, pois estamos
condicionados a fazer o que todos os outros fazem, quer se trate de arte, lazer
ou turismo. O segundo nasce desse fosso que, nos regimes democráticos, se
interpõe entre a cultura dos peritos e a cultura profana. Esta situação
demonstra-nos claramente que, em termos artísticos, o projeto democrático nunca
foi levado muito a sério, ou então reverteu-se em paródia de si mesmo. Como
pode existir divisão entre alta cultura e cultura profana se o juízo de valor
pressupõe o critério de qualidade? Se esse critério não existe, como o afirmam
em cacofonia as vanguardas e todas as instituições artísticas, então a muralha
entre classes culturais também se torna nula: é tudo pimba! Repertório... revela-nos esse mundo
hiperrealista onde a arte perdeu toda a sua significação, sinistro eco no
abismo do Real, pesadelo cool, transparente, pop e publicitário. O que nos permite
distinguir a alta cultura depende de um mero ato de fé ou superstição. A arte
comeu-se a si mesma, e assim morreu envenenada: contemplatio mortis apocalyptica. (...) O que Repertório... nos mostra, em delírio tragicómico e
trans-referencial, é esse caminho de escombro e cinza, esse vislumbre de
não-caminho, que nos leva aonde nós já estamos: aqui.”
2017
Miguel
Pereira, Susana Otero, Joclécio Azevedo e Rogério Nuno Costa conhecem-se
pessoalmente durante as comemorações dos 100 Anos do Fim da História. Juntos
escrevem um texto-manifesto intitulado “O que é que não está na moda outra
vez?”.
2019
A
Indústria, cansada de ter que mudar os nomes aos sub-géneros musicais de cariz indie por se tornarem comerciais no espaço de poucas semanas,
decide reduzir todas as categorizações a uma só: mashup. Todas as bandas e músicos do mundo deixam definitivamente
de editar e passam a remisturar tudo o que já foi produzido. Na Europa, e por
decisão parlamentar, todas as companhias passam a ser companhias “de repertório”,
ficando assim impedidas de criar peças “novas”.
2024
Uma
atualização ao Código do Trabalho inaugura a figura do “artista submergente”,
que passa a receber apoios específicos para residências artísticas (entre
outros projetos bartlebyanos) a partir do ano seguinte.
2025
Para
assinalar os 30 anos de existência, o Ballet Contemporâneo do Norte aloja num
website uma timeline a-temporal (e incidental) intitulada: Para uma Historiografia dos Excluídos, dos Invisíveis e dos
Silenciados.
2037
A
Entidade Reguladora para a Comunicação Social exige que se crie o Prémio para a
Melhor Cerimónia de Entrega de Prémios. No ano seguinte, o Comité Olímpico
Internacional eleva finalmente a Arte à categoria de modalidade olímpica.
2038
A
Sociedade Portuguesa de Autores é comprada pelo Sporting Clube de Portugal.
2064
A
França faz-se representar na Bienal de Veneza por uma obra em grande escala
pensada por um coletivo de robots.
2065
Morre
Nicolas Bourriaud.
2578
Uma
entidade nano-tecnológica não-corpórea, mas munida de inteligência natural,
passeia-se por uma praia ao pôr-do-sol. Decide parar para apreciar a bela
paisagem sideral. Senta-se numa cadeira, observando a sua própria respiração. Ao
longe, ouve-se indistintamente os ecos de uma melodia subliminar: “You and me
got a whole lot of history, We could be the greatest team that the world has
ever seen, You and me got a whole lot of history, So don't let it go, we can
make some more, we can live forever.”
Século XXII
Uma
epidemia intergalática oblitera todas as manifestações de vida presentes no
Cosmos, provocando um novo rasgo incidental na linha espaço/tempo. Desse
cataclismo emana uma mensagem em código arcaico que é difundida até ao ano
2016. Essa mensagem diz: LOL.
Rogério Nuno Costa
Abril 2016